segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Diário de bordo


A dez anos atrás com o entusiasmo e a coragem latente dos amadores, Eliomar Bonavita se aventura a dirigir a peça “O Homem do Princípio ao Fim” de Millôr Fernandes. A montagem não se concretiza, mas do texto fica em carimbado em sua memória o epílogo final intitulado de “A Última Flor”, um poema do escritor e cartunista James Thurber.

Durante anos o desejo de montar esse texto em forma de esquete sempre esteve presente, mas ele não queria se dirigir, precisava de um olhar de fora. Sendo assim convidou alguns amigos para assumir essa função, mas não obteve sucesso.

Nessas idas e vindas o exemplar do texto se perdeu e com ele a urgência em montá-lo. Anos se passaram e sempre que se tinha notícia ou desejo de participar de algum festival a primeira opção era sempre o texto de Thurber. Até que um dia ele decide montá-lo de fato e desta vez o convite é direcionado à Rodrigo Abreu que aceita imediatamente e finalmente o texto começa a ser montado.

Nos primeiros encontros que acontecem no playground do prédio de Rodrigo, é realizada uma pesquisa sobre as primeiras impressões do texto. Imagens, cores, músicas, sensações, texturas... Ambos conversam muito e já ali concluem que tem muito trabalho a fazer, muito material em mãos e muita coisa a ser dita em apenas quinze minutos.
Então, como comunicar? Como chegar até as pessoas? Como fazer com que entendam a nossa mensagem?

-O que você acha de montarmos uma peça com esse texto?- Pergunta Rodrigo.

O convite muda de lado e a resposta também é positiva. A partir de então, inicia-se uma pesquisa mais aprofundada. Elio, muito resistente, exigia dedicação extra do Rodrigo, que junto aos estudos, fazia alguns exercícios que visavam além de desbloqueá-lo, aumentar ainda mais sua sensibilidade.

Rodrigo e Elio, seguem com os estudos por algumas semanas, já na sede da Orquestra Livre. Era a hora de terem mais gente com eles, então surgem os primeiros profissionais a integrarem equipe...

Esta será a primeira produção da Sétimo Mar Produções Artísticas ltda, produtora do Rodrigo; sendo assim nosso diretor de produção já tinha nome e sobrenome, Élcio Abreu e nossa produtora executiva também, Elisabete Massa. Gigi Bandeira veio para registrar tudo de perto com suas lentes fotográficas, fazendo a nossa programação visual. Tornando o ambiente ainda mais familiar surge a nossa figurinista, Sammara Niemeyer, que passa a acompanhar todos os ensaios de perto, aliás esta é uma exigência deste trabalho. Todos os envolvidos devem participar de fato do processo de criação.

Neste momento passamos a nos reunir duas vezes na semana, quintas e domingos. Retomada a pesquisa, chegamos a conclusão de que só o texto não supria nossas necessidades, levando em consideração que não queríamos um espetáculo de performance ou de teatro-dança. Então a opção é construir um roteiro em que o texto se encaixasse e para isso precisaríamos de um tema que o conduzisse. A sugestão do Rodrigo aceita por todos foi falar sobre a hipocrisia.

Processo caminhando, o trabalho crescendo e precisávamos de um projeto, para isso fizemos uma sessão de fotos no centro do Rio. Gigi fez vários clicks que iriam dar vida ao nosso primeiro tratamento do projeto.

A essa altura mudanças já aconteciam na equipe, Bete nos deixava e para assumir o seu posto veio Renata Andrade, que chegava exatamente no dia em que começaríamos a elaboração do roteiro. Opiniões opostas, falhas de comunicação, conflitos e uma conclusão: tínhamos material suficiente sobre “A Última Flor”, mas não tínhamos sobre hipocrisia. O que fazer? As opções eram adaptar o texto para cinqüenta minutos, o que implicaria na criação de outro texto ou descobrir sobre o que de fato ele trata, escolher um tema e criar um roteiro em cima dele. A adaptação foi uma escolha que levou o Rodrigo a escrever compulsivamente um texto que à noite foi enviado ao Elio por e.mail. O resultado não era nem de longe o que ele queria dizer. Novo conflito e mudança de planos... Mais uma vez, a criação de um roteiro surge como o melhor caminho a seguir. Desta vez falando sobre o homem.

Os dias tumultuados e essa confusão no processo resultou numa “crise de criação” do nosso diretor e o processo ficou um pouco inerte.

Novo encontro é marcado, novo ânimo se instala e um novo processo surge. Como já disse, o tema do nosso roteiro é o homem, mas apenas isso não basta, então conversas e mais conversas em torno do assunto resultam naquela que seria a espinha dorsal do nosso roteiro: A degradação do homem, que tem início nos instintos e na razão dando origem ao homem, que se torna indivíduo, se deteriora e entra em colapso (que aqui é entendido como uma transição), levando até a última flor, que seria uma capacidade de sair da inércia, de comunicar-se, de ver o outro e ser por ele.


Os estudos em torno do novo tema, ganham força e o processo recomeça mais uma vez.
A idéia de que os profissionais envolvidos no projeto façam parte do processo de criação se mantém e para que isso aconteça, eles precisam ser definidos com urgência.
Em uma de suas aulas de canto com o maestro e diretor da Orquestra Livre, Márcio Carvalho, Rodrigo expõe sua idéia de concepção do espetáculo, e ela se encaixa perfeitamente com as convicções do Márcio, além de ser o assunto de sua tese de mestrado. Sendo assim, “A Última Flor” se torna parte integrante da tese do Márcio que como conseqüência torna-se o nosso diretor musical, dando nova vida à pesquisa.

Nossos encontros ganham mais um dia, a terça-feira, que passa a ser dedicada aos estudos com a música. Experimentos são propostos e uma nova percepção auditiva e sensorial acontece. O corpo é forçado a sentir a música e a fazer parte dela. Tarefa difícil, mas que em apenas três encontros ganha um alto grau de entendimento, satisfazendo bastante os anseios do Márcio. Destes experimentos, surge uma cena criada para a música “O Grito de Hiroshima”. O resultado deixa todos impactados e ao Elio esgotado fisicamente. Entusiasmado, Márcio sugere que o trabalho seja levado adiante, em festivais de teatro-dança. Também parte dele o convite para que Elio faça parte do seu concerto de mestrado, apresentando o texto de Thurber.

O concerto aconteceu no Theatro Municipal de Niterói. Um dia especial para todos. Música e teatro em perfeita harmonia, não só como colaboradores e sim como um órgão único. Assim foi a apresentação que reuniu a Orquestra Livre, o coral do IBGE, alunos, amigos e atores convidados. Rodrigo ficou encarregado de encarnar o Rei Herodes em “Salomé” e Elio de apresentar “A Última Flor”.

A peça que estamos montando bebe do texto de Thurber, mas não é ele, então neste dia o desejo do Elio de apresentá-lo ao público tornou-se realidade. Uma emoção única! No palco, conseguiu desempenhar bem as indicações dadas pela direção de Rodrigo, atrás dele a orquestra seguia atenta aos comandos do maestro que com imensa sensibilidade contracenou brilhantemente com o texto e com ator. Afinal estavam todos ouvindo a música, que tinha sido composta no dia anterior, pela primeira vez. E a platéia lotada do Municipal ouvia atentamente a nossa mensagem.
Estava feito! O primeiro contato entre “A Última Flor” e o público tinha acontecido com sucesso!

Passada a apresentação retornamos aos experimentos que já estavam quase chegando ao fim, ou seja, a última flor estava por perto.

Mas ainda precisávamos fechar a nossa equipe, já que a negociação com a Claudia Provedel, para fazer a preparação corporal não passou da portaria do seu prédio e ainda no início do processo a cenógrafa Márcia Nemer teve que nos deixar, devido à sua agenda lotada.
Pois é neste final do processo que se junta a nós Marcelo Cotta, o cenógrafo que possui um histórico parecido com o que procurávamos para o trabalho.

Por conta de vários compromissos pré agendados pelos membros da equipe, as férias se faziam necessárias. Com exceção da Renata que continuou debruçada sobre a elaboração do projeto; do Rodrigo e Elio que trabalharam juntos na construção do roteiro todos ganharam vinte dias de folga.

Os encontros para o tratamento do texto seguem muito produtivos e o resultado bem satisfatório. A última flor está germinando.
Fim da longa pausa. Hora de pôr a mão na massa!
Com o roteiro em mãos, Rodrigo escreve o texto e começa um árduo trabalho de montagem. Os ensaios ganham novos dias: quintas à noite e fins de semana à tarde. A equipe... Essa continua incompleta, mas é nesse momento que ganhamos o reforço plumário de Maria Thereza (uma avestruz de pelúcia), nossa preparadora corporal, que logo é substituída por Ana Mirian Pichini (uma mulher de toque). Também se junta a nós Lucimar Ferreira nossa assistente de produção de riso farto.
Enfim, "A Última Flor" representa o nosso desafio de comunicar sempre, de não fazer um teatro raso onde meia dúzia de pessoas entendam o que foi dito e outras duas saiam realmente tocadas. Queremos ir além, não nos basta ficar na superfície do corpo, não queremos só os arrepios, queremos a hepiderme, queremos o contato, o tocar e ser tocados. No palco um artista estará só, mas em momento algum ficará sozinho, isso porque ele terá Rodrigo Abreu, Sammara Niemeyer, Márcio Carvalho, Renata Andrade, Marcelo Cotta, Ana Mirian Pichini, Lucimar Ferreira, Maria Thereza e vocês com ele a todo instante dentro e fora...